O alçapão estava intocável à mais de uma década. Com o seu cheiro característico a humidade e alfazema. E nem o queria acreditar. Ainda eram frescas as minhas memórias, em que brincava sobre e dentro dele com as bonecas de porcelana. Penteava-as, vesti-as e roçava-lhes as unhas porque adorava a sua textura. Imaginava-as como um bando de filhas minhas, todas lindas e muito brancas - porque as princesas dos livros têm a pele muito clarinha. Mas agora ali estava eu, a empacotar trapos velhos e louças horrendas que me foram herdadas mas nunca as usei. Ia-me mudar, para um país onde nem sequer a minha língua se falava. Mas tinha de ser - e como sempre me disse o meu pai - porque o "tem de ser" tem muita força. E o meu tinha, porque preferi aceitar a protestar. Custou. Mas não ganharia nada com aquilo. Só mais amargura para aqueles que, também como eu, tiveram que ter um tem de ser bem fixo na sua mente. Era difícil abandonar a cidade que nos colheu. Que nos iluminou pela primeira vez os olhos, a única terra que sentimos nas palmas aos primeiros passinhos e o primeiro país que pronunciamos com a sua língua. Tinha algo de doloroso, mas de ambíguo também. Era como uma nova etapa, um nosso rumo, quiçá uma nova oportunidade de renascer e esquecer maleitas. E embora todas as maravilhas que deixarei para trás, não ia olhar mais para elas. Há que seguir. Há que ver o lado bom da força que possui este inesperado tem de ser.
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1 comentário:
Amei este texto, lindo!!!
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