sábado, 22 de agosto de 2009

espaços vazios.

Tamborilou os dedos magros de unhas vermelhas na mesa de vidro transparente. Estava silêncio, não só no salão como em toda a casa. Um casarão daqueles não deveria ser só para duas pessoas, pensou. Sentiu um sabor amargo na boca. Era uma casa vazia por sua culpa. O amargo passou da garganta para o peito. Nunca nos darei um filho, ecoou-lhe na cabeça e deitou esta no tampo da mesa e brincou com um apanhado de cabelos. Uma gargalhada quebrou o silêncio e fê-la levantar a cabeça para procurar o rosto do marido que ria para o ecrã do portátil branco. Estava a ver pela câmara-web o seu mais recente sobrinho a fazer bolhinhas de saliva. Ela sorriu ao marido, mas este estava demasiado deliciado para reparar. Nunca o viria a dar aquela gargalhada para o seu filho ou filhos, herdeiros daquele casarão comprado sempre a pensar nas crianças que viriam um dia do ventre dela. Ainda não teriam eles tido conhecimento de que ela era estéril. Que por meio biológico nunca teriam nem uma criança sequer. O seu maior sonho sempre fora ter filhos, dois rapazes e uma rapariga - que seria a menina dos seus olhos. E agora isso seria impossível por a mulher que ama não conseguir engravidar.
Ela puxou a cadeira para mais perto dele, queria-lhe ver o rosto. Estavam casados à dois anos. Ainda somos umas crianças nisto, pensou, arrastou os pensamentos para as infinitas conversas ao longo de serões nocturnos no sofá em que ele lhe dissera que não estava triste por não puder ser pai, porque casara com a melhor criança que conhecera em toda a vida. Não era um insulto, muito menos uma deixa para originar discussão. Antes pelo contrario. Ela gostava de escuta-lo, e por isso enroscava-se mais no corpo do marido a procurava no peito o som do coração a bater. Era bastante irrequieta, perdia-se a ver desenhos animados de manhã e tinha um sorriso doce e juvenil. E era exactamente isso que mais o apaixonava nela. A fragrância da maturidade com a postura infantil.
Olhou em redor, meteu uma perna por debaixo do rabo na cadeira, estalou os dedos, murmurou aborrecida por se ter esquecido de meter a roupa a lavar, voltou a deitar a cabeça, cantou baixinho o refrão da Lost da Grace enquanto marcava o ritmo com um dedo a bater num cantinho do portátil. Ele olhou-a e arqueou uma sobrancelha, ela sorriu-lhe e continuou a cantar de tom baixo. Gostava de a ouvir cantar, lembrou-se a si mesmo, a voz dela é como mel. E sorriu em troca e voltou a colar os olhos na sua caixa de e-mails.
- Porque é que não adoptamos? sugeriu ela. Ele fez-se de despercebido – Um cão? - Não, uma criança. Temos condições financeiras para adoptar um orfanato inteiro. Temos uma relação estável e tanto a minha família como a tua se dão bem e nos apoiariam no processo. O rosto dele mudou de expressão. Tornou-se fechado e sem emoções. - Não quero um filho de outra pessoa. Se... se não podemos ter um do nosso sangue é porque é para ser assim. Só nos dois. Sentiu-se culpada e os olhos encheram-se de água. Mas ele estava demasiado magoado para naquele momento as lágrimas dela lhe tocarem. Desligou o computador e levantou-se, ela fungou, abriu a boca mas voltou a fecha-la. - Pega no cartão de crédito e compra um bicho de estimação qualquer. Voltou-se de costas para ela. - O que não falta é espaço.
Mas o seu peito é como esta casa, compreendeu, haveria sempre um espaço por preencher.

11 comentários:

Soraia disse...

Está tão lindo querida! *_*
Beijocas :D

m. disse...

uma mistura de razão e emoção junta a uma boa forma de expressão dá um texto assim , perfeitamente bem conseguido ;)

N R disse...

È difícil falar sobre este assunto e estiveste muito bem. Ao falar do lado mais infantil dela e do quando ele o apreciava, mostraste ainda mais o quanto ele gostava de ter filhos e como isso o afecta. Em situações ideais seria fácil falar, ninguém merece ouvir frases como "Pega no cartão de crédito e compra um bicho de estimação qualquer.", mas ao fazeres essa abordagem, muito mais difícil, passaste muito melhor a mensagem e mostraste os dois lados.
È pena que isto aconteça, ninguém têm a culpa de ser estéril, ou em outros casos, quando um dos elementos do casal não quer ter filhos, também não deve sofrer pressão por parte do outro, mas infelizmente é quase inevitável. Muitas vezes é um problema de comunicação.

qel disse...

eu acredito em milagres até porque os meus pais tinham problemas e tiveram anos e anos a tentar engravidar, com ajduas e montes de tratamentos para combater a infertilidade. A minha mãe sofreu um aborto e depois, quando quase já estavam pra desistir, sem saber muito bem como, nasci eu. E digo-te, sabe muito bem saber que fui tão desejada, ainda por cima no sexo preferencial :)
um beijinho *

Joana M. disse...

Gosto de ver a versatilidade da tua escrita, a variabilidade de temas e a forma única como os conjugas com as imagens.

AF disse...

chocante, mas real.

pequena amadora ^^ disse...

ta lindo, tocant e realista.
amei. =)

cátia castro disse...

Tipo, nao tiveste um outro blog antes deste ?

Mara disse...

Este está divinal*
Nem tenho palavras.
Estou aqui sentada e é como se uma brisa me afagasse o rosto.

muito bom mesmo Mafalda
tocante

P' disse...

Sentido e verdadeiro.
Está perfeito !

Borrega disse...

Mafalda,brilhante, mais uma vez!
Tema delicado...
A carga emocional, tanto dela como dele, sai das tuas palavras e toma forma aos olhos de quem lê...

Gostei muito

BeijO*
Borrega