A descoberta daquilo que realmente sou chegou tardia. Sempre foi tudo muito estranho, muito arrastado e para mim, muito confuso. Eu senti os primeiros sintomas deste "problema" em bem pequena. Provavelmente desde que comecei a falar, a desenvolver este meu lado mais observador a calculista. Eu sempre tive um fascineo pela dor, pelo sofrimento alheio. Eu nunca fiquei triste com o mal dos outros, pelo contrário. Havia sempre um certo prazer...
Em pequena o meu avô chamava-me de bruxa. Eu quando ia ao circo com os meus pais e vislumbrava os acrobatas lá tão alto ás piruetas - não me sei explicar bem - havia em mim uma ténue fome de que alguém se magoasse. Dizia baixinho para mim «cai cai cai cai», e evidentemente que não acontecia. E eu sentia-me incompleta. Ás vezes, diversas vezes na nossa vida aliás, já assistimos a quedas de amigos, desconhecidos, familiares. A primeira impressão de uma pessoa por norma é rir-se, e a segunda é a preocupação. Eu senti-a alivio, como um conforto ao meu «eu» interior. Gostava, acalmava-me o peito ver aquela pessoa dorida e estatelada no chão. As pessoas brincavam comigo ou contavam piadas e eu não ria, odiava desenhos animados, já excepção feita a bonecos estilo "Tommy e Jerry", em que episódio atrás de episódio eles se magoavam e se maltratavam. Eu não sorria, eu sentia-me melhor e satisfeita a cada cena caricata. Os meus pais quando falavam de mim aos amigos diziam que eu era má, mas até era bem comportada. Não gostava que o dissessem, porque eu nunca fiz mal a ninguém. Só ansiava fundo que algo de mal acontece-se. Não me importava se era familiar ou desconhecido. Eu não tinha essa afectividade que os meus colegas da escola tinham pelos pais, pelos irmãos. Quando a minha irmã nasceu, já eu estava na pré-adolescência. Ela chorava muito, e eu adormecia ao som da dor dela. Fosse o que fosse, se chorava era porque estava insatisfeita, se sentia mal, e isso fascinava-me. E aí sim, sorria, adormecia de sorriso de contentamento no rosto. Os meus professores e educadores perguntavam-me se achava bem eu ser tão feliz ao mal dos outros. Eu achava que sim, porque cada um alimenta a sua fonte de felicidade como quer e bem lhe apetece. Eu nunca magoei ninguém, aliás, tenha um pânico incontrolável de fazer mal a alguém. Quando se começou a falar em penas de morte, liberalização do aborto e da eutanásia. Cresceu em mim uma fome maior: Haverá mal pior que a morte? Poderá uma pessoa sofrer mais do que ao morrer? Fiz bastantes pesquisas, e sugeri-as inclusive como trabalhos da escola, para que dessa forma não fosse tão estranho o meu interesse pelos temas. Cheguei a conclusão que eu era a favor de tudo. Da pena de morte, do aborto e da eutanásia. Porque tudo implicava de certa forma, um determinado mal. E cá dentro eu senti-me novamente incompleta, eu precisava de algo mais perigoso, de algo mais sofrido.
Morar num bairro social ajudou-me bastante. Não são muito frequentes, mas volta e meia aconteciam tiroteios ou grupos andavam à porrada uns com os outros. E havia sempre sangue, feridas, membros quebrados. Não me juntava à confusão, ia depois, depois de tudo acabar em tragédia eu corria para ir ver. Beber um pouco desta delicia para os meus olhos que quase os fazia chorar. Infelizmente não tive muitas vezes a oportunidade de assistir à confusão pela janela do meu quarto. Era sempre tudo na praça principal, e a minha janela dava para as traseiras de um baldio. Mas houve um dia em que, por fim, quase ao fim de 20 anos, me apercebi de talvez eu não fosse de todo normal. Algo estava errado comigo, para eu fazer o que fiz. Num desses incidentes, um rapaz foi morto quase a porta do meu prédio. E surgiu em mim uma vontade louca de lhe chegar perto. Tão perto, que lhe toquei. Toquei num corpo morto, recheado de ferimentos, sangue e sujidade. E o facto de ter esse contacto tão directo com aquilo que me satisfazia, assustou-me... Chorei. Não sei de do medo, ou se do choque. Procurei ajuda psiquiatrica. E aqui estou eu, dois anos depois de acompanhamento e alguma leve medicação, a dar o meu testemunho. De uma mulher que aos vossos olhos também será má, mas que continua afirmar, que de má nunca teve nada. Só perigosos desejos.
Rose M.
1 comentário:
Eu não acho que sejas más, acho que pode ser uma necessidade primária que tens. Eu às vezes também sou um pouco assim, não é desejar mal aos outros ou até a mim próprio, mas é do genero achar que nem tudo deve correr sempre bem, como uma necessidade de equilíbrio, uma tomada de consciência até para depois se melhorar, pois também acredito que o confronto é das melhores maneiras para aprender algo, até para se ser mais capaz e consciente com os outros.
Mas ao mesmo tempo surge uma dor enorme por ver alguém mal, e uma vontade de ajudar, como se essa dor fosse algo que belo que vêm da humanidade e demonstra que se está vivo.
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